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                            Ponte para Terabítia    

 Capitulo 1

Vruum, vruum, vruum... Tuque-tuque-tuque-tuque... Ótimo. O pai tinha conseguido que a caminhonete pegasse. Agora Jess podia se levantar. Deslizou para fora da cama, caindo direto dentro do macacão. Não se preocupou com a camisa, porque assim que começasse a correr ia esquentar que nem a água da chaleira. Nem com sapatos, porque suas solas dos pés a esta altura já estavam tão grossas quanto as de qualquer calçado.

— Onde você vai, Jess? — perguntou May Belle, se levantando, sonolenta, da cama de casal onde ela e Joyce Ann dormiam.

— Pssiu... — avisou ele.

As paredes eram finas. Mamãe ficaria furiosa feito um touro bravo se alguém a acordasse naquela hora do dia.

Ele acariciou o cabelo de May Belle e ajeitou o lençol, cobrindo-a até a altura do queixinho.

— Vou até o pasto — sussurrou.

May Belle sorriu e se encolheu debaixo das cobertas.

— Vai correr?

— Talvez.

É claro que ele ia correr. Tinha levantado bem cedo todos os dias do verão para correr. Metera na cabeça que, se se dedicasse bastante – e Deus sabia como estava se dedicando – podia ser o corredor mais rápido da 5ª série quando as aulas recomeçassem. E tinha que ser o mais rápido. Não um dos mais rápidos, nem quase o mais rápido, mas realmente o mais rápido de todos. O melhor de todos.

Saiu de casa na ponta dos pés. O lugar estava tão velho que rangia cada vez que ele apoiava o pé no chão, mas Jess tinha descoberto que, na pontinha do pé, o barulho era só um gemido fraco, e geralmente conseguia chegar lá fora sem acordar a mãe, Ellie, Brenda ou Joyce Ann.

Já com May Belle, a história era outra. Ela ia fazer sete anos e simplesmente o adorava, o que às vezes era ótimo. Quando você é o único menino de uma família, imprensado entre quatro irmãs, e as duas mais velhas te desprezaram desde o momento em que você não deixou mais que elas ficassem te vestindo para brincar de boneca, e te empurrando de um lado para o outro num carrinho enferrujado, enquanto a menorzinha só faz chorar aos berros se você olhar para ela com uma cara mais séria, então dá para ver como é bom ter alguém que te adora. Mesmo se de vez em quando isso cria uns probleminhas.

Atravessou o quintal bem depressa. Quando respirava, o ar saía em pequenas nuvens de vapor – estava bem frio para o mês de agosto. Mas é porque ainda era cedo. Lá pelo meio dia, quando a mãe o mandasse trabalhar lá fora, já estaria bem quente.

Miss Bessie olhou-o sonolenta enquanto ele subia pelo monte de sucata e entulho, pulava a cerca e entrava no pasto.

— Muuuu... — fez ela, olhando pra todo lado, como se fosse outra May Belle, com seus olhos castanhos enormes e caídos.

— Oi, Miss Bessie — cumprimentou Jess, para tranquilizá-la. — Pode continuar dormindo.

A vaca caminhou até uma mancha de capim mais verde – o pasto estava quase todo seco e marrom – e abocanhou uma boa quantidade.

— Isso, menina. Assim é que eu gosto... Fique aí tomando seu café da manhã. Não ligue para mim.

Ele sempre começava no canto mais a noroeste do pasto, agachado como os corredores profissionais que tinha visto no Mundo dos Esportes.

— Bang! — exclamou.

E partiu a toda velocidade pelo campo afora. Miss Bessie caminhou em direção ao centro do pasto, sempre a segui-lo com os olhos sonolentos, mastigando bem devagar.

Não parecia uma vaca muito esperta, mesmo levando em conta que o gado em geral não possuía um ar muito sabido, mas era suficientemente inteligente para sair do caminho de Jess.

O cabelo dele, cor de palha, balançava de encontro à testa, e os braços e as pernas se esparramavam para todo lado. Ele nunca aprendera a correr direito, mas tinha pernas bem compridas para um menino de dez anos, e ninguém tinha mais garra do que ele.

A Escola Primária de Córrego da Cotovia tinha poucos recursos e faltava quase tudo, principalmente equipamento esportivo. Por isso, todas as bolas acabavam ficando com os alunos das séries mais adiantadas, na hora do recreio, depois do almoço. Mesmo se alguém da 5ª série começasse o recreio com uma bola, com toda certeza ela estaria nas mãos de um garoto da 6ª ou da 7ª antes que se passasse meia hora.

Os meninos mais velhos sempre pegavam para si o centro do campo de cima, que ficava mais seco, e as meninas exigiam o pedacinho mais do alto para pular corda ou carniça, ou até para ficar só conversando, andando de um lado para o outro. Por isso, os meninos das séries de menor graduação inventaram aquela história de apostar corrida. Eles todos se alinhavam ao longo do lado mais distante do campo de baixo, onde sempre estava enlameado ou ressecado e com rachaduras, cheio de buracos. Earle Watson, que não sabia correr mas tinha uma boca enorme, gritava “Bang!” e todos saíam correndo até uma linha que tinham riscado com o pé, ao longo da outra extremidade.

Uma vez, no ano passado, Jess tinha ganhado. Não apenas uma corridinha, mas a bateria completa. Uma única vez. Mas ficou com um gostinho de vitória na boca. E queria mais.

Desde que entrara no colégio, na 1ª série, tinha sido sempre “aquele garoto maluco que passa o tempo todo desenhando”. Mas houve um dia – para ser exato, um 22 de abril, uma segunda-feira meio chuvosa – em que ele correra mais que os outros e passara na frente de todo mundo, com aquela lama vermelha se enfiando pelos buracos da sola de seus tênis. Durante o resto daquele dia, e até depois do almoço do dia seguinte, ele fora “o garoto mais rápido da 3ª, 4ª e 5ª séries”, e só estava na 4ª.

Na terça-feira, Wayne Pettis ganhou de novo, como sempre. Mas este ano, Wayne Pettis estaria na 6ª. Ia jogar futebol até o Natal, e beisebol até junho, com o resto dos garotos grandes. Qualquer um tinha a chance de ser o corredor mais rápido, e ele jurava por Miss Bessie que esse campeão ia ser Jesse Oliver Aarons Jr.

Jess sacudiu bem os braços e inclinou a cabeça em direção à cerca distante. Era capaz de ouvir os meninos da 3ª série torcendo por ele. Iam segui-lo por toda parte, como se ele fosse um astro da música country.

E May Belle ia estourar de satisfação.

O irmão dela ia ser o melhor, o mais rápido. Era motivo de sobra para o resto da 1ª série ficar verde de inveja. Até mesmo o pai ia ficar orgulhoso dele.

Jess fez a volta, no canto. Não dava para continuar tão depressa, mas ele ainda correu por algum tempo – era bom, ajudaria a fortalecer os músculos. May Belle contaria ao pai, assim não ia parecer que era ele, Jess, quem estava contando vantagem. Talvez o pai ficasse tão orgulhoso que até se esquecesse de como ficava cansado de viajar diariamente a Washington, e de cavar e carregar peso o dia inteiro. Ia até deitar no chão e brincar de luta com ele, como costumavam fazer havia muito tempo.

O Velho ia ficar surpreso ao constatar como ele tinha ficado forte nos últimos dois anos.

O corpo implorava que Jess parasse, mas ele ia em frente. Tinha que fazer com que aquele peito ofegante soubesse quem mandava ali.

— Jess — chamou May Belle do outro lado do monturo — mamãe mandou você entrar pra comer. Deixe pra ordenhar mais tarde.

Ai, droga. Tinha corrido demais. Agora todo mundo ia ficar sabendo que ele tinha se levantado cedo, e iam começar a implicar com ele.

— Está bem, já vou.

Fez a volta, ainda correndo, e foi em direção ao monturo. Sem perder o ritmo, pulou por cima da cerca, embarafustou por cima da sucata, deu um tapinha na cabeça de May Belle (“Ai!”) e seguiu no trote para casa.

— Olhem sóóóó, vejam o grande campeão olííímpico... — zombou Ellie, batendo duas xícaras em cima da mesa, e fazendo o café preto e forte derramar. — Lá vem ele, suando que nem uma mula carregada.

Jess empurrou para trás o cabelo caído no rosto e desabou no banco de madeira. Jogou duas colheres de açúcar numa xícara, e soprou para que o café escaldante não lhe queimasse a boca.

— Ai, mãe, ele está fedendo... — reclamou Brenda, apertando delicadamente o nariz com os dedinhos rosados. — Mande ele se lavar...

— Vá até a pia e lave o rosto — disse a mãe, sem tirar os olhos do fogão. — E depressa. O mingau já está pegando no fundo da panela.

— Ah, mãe, de novo? — gemeu Brenda.

Deus do céu, como estava cansado! Não havia um único músculo em seu corpo que não estivesse doendo.

— Você ouviu o que mamãe disse — gritou Ellie às suas costas.

— Não dá para aguentar, mãe! — reclamou Brenda de novo. — Mande ele levar esse fedor para longe deste banco...

Jess apoiou o rosto na madeira nua da mesa.

— Jesseee! — ralhou a mãe, agora olhando para ele. — E vá botar uma camiseta.

— Já vou...

Arrastou-se até a pia. A água que jogou no rosto e nos braços estava gelada. Sua pele quente se encolhia debaixo dos pingos frios.

May Belle estava de pé junto à porta da cozinha, olhando para ele.

— Me dê uma camiseta, May Belle.

A menina olhou-o como se sua boca fosse dizer que não, mas em vez disso, falou:

— Você não devia ter me dado um tapa na cabeça...

E saiu, obediente, para buscar a camiseta como ele tinha pedido. May Belle era um amor, dava pra contar com ela. Se fosse Joyce Ann, ainda estaria gritando por causa daquele tapinha. Criança de quatro anos é um saco.

— Eu tenho um monte de trabalho para ser feito por aqui hoje de manhã — anunciou a mãe, quando estavam terminando de comer o mingau com molho vermelho. Ela era da Geórgia e ainda cozinhava à moda de sua terra.

— Ah, mãe! — Ellie e Brenda gemeram em coro.

Aquelas duas sempre conseguiam pular fora do trabalho, mais depressa do que um gafanhoto saltando pelo meio dos dedos da gente.

— Mãe, você prometeu que eu e Brenda podíamos ir a Millsburg comprar material para a escola.

— Vocês não têm dinheiro para ir fazer compras de material.

— Mãe... A gente vai só dar uma olhada... — Deus do céu, como Jess queria que Brenda parasse de falar mole daquele jeito... — Puxa, não é possível que você não quer que a gente se divirta nem um pouquinho...

— ... que você não queira... — corrigiu Ellie, rapidamente.

— Cala a boca!

Ellie a ignorou e Brenda prosseguiu:

— A senhora Timmons vai passar aqui para nos pegar. Eu tinha dito a Lollie, no domingo, que você falou que a gente podia ir. Puxa, agora fico sem graça de ligar para ela e dizer que você mudou de ideia.

— Está bem, está bem... Mas eu não tenho dinheiro nenhum para dar para vocês, se quererem comprar alguma coisa.

Se vocês quiserem, soprou uma vozinha dentro da cabeça de Jess.

— Eu sei, mãe. Vamos levar só os cinco dólares que papai prometeu. Só isso.

— Que cinco dólares?

— Ah, mãe, você não pode ter esquecido... — a voz de Ellie era mais melosa do que uma barra de chocolate derretida. — Ainda na semana passada papai estava dizendo que só íamos poder gastar uns trocados para fazer as compras do material para a escola.

— Chega, toma logo! — disse a mãe, zangada, esticando o braço para alcançar, na prateleira em cima do fogão, a bolsa de plástico velha e gasta, cheia de rachaduras.

Contou cinco notas amassadas.

— Mãe... — Brenda ia começando de novo — ... será que não dava pra arranjar só mais uma? Assim ficam três para cada uma...

— Não!

— Mãe, não dá pra comprar nada com dois dólares e meio. Só um caderninho à toa já está custando...

— Não!

Ellie levantou-se fazendo barulho, e começou a tirar a mesa, dizendo em voz alta:

— É a sua vez de lavar a louça, Brenda.

— Ah, Ellie...

Ellie a ameaçou com uma colher. Jess viu o olhar que acompanhou o gesto. Brenda calou-se na mesma hora, e desligou aqueles gemidos chatos que vinham saindo de sua boca pintada de batom Brilho de Rosas. Não era tão esperta quanto Ellie, mas mesmo assim percebeu que não devia forçar demais a situação com a mãe.

Como sempre, o trabalho todo sobrou para Jess. A mãe nunca mandava que as pequenas ajudassem, muito embora ele em geral acabasse conseguindo que May Belle fizesse alguma coisa. Deitou de novo a cabeça na mesa. A corrida tinha acabado com ele naquela manhã. Pelo ouvido que ficara do lado de cima da cabeça deitada, entrou o barulho do velho Buick da família Timmons – “Está precisando de óleo”, diria seu pai – e, em seguida, veio a algazarra animada das vozes do outro lado da porta de tela, enquanto Ellie e Brenda se apertavam no assento do carro, por entre os sete Timmons.

— Vamos, Jesse. Vamos acabar com essa preguiça e levantar logo desse banco. As tetas de Miss Bessie já devem estar quase arrastando no chão, de tão cheias de leite. E você ainda tem que ir colher vagem.

Preguiçoso. Então o preguiçoso era ele.

Deu mais um minuto de descanso à cabeça em cima da mesa.

— Jesseee!

— Já estou indo, mãe...  Num instante...

 

* * *

 

Foi May Belle quem foi contar a ele, lá na roça de vagem, que tinha um pessoal se mudando para a casa velha dos Perkins, no sítio vizinho. Jess afastou o cabelo dos olhos e olhou. Era mesmo. Tinha um caminhão parado bem na porta. Um daqueles grandões, fechados. Puxa, aquela gente tinha um montão de coisa. Mas não iam ficar muito tempo por ali. A casa dos Perkins era uma dessas casas bem velhas, caindo aos pedaços, para onde as pessoas se mudam só quando não têm um lugar decente para morar, mas, assim que podem, tratam de sair dali o mais depressa possível.

Mais tarde, ele bem que pensou nisso: que coisa estranha, provavelmente a coisa mais importante da vida dele estava acontecendo e ele sacudia os ombros, nem ligava, como se não fosse nada.

As moscas zumbiam em volta de seu rosto e dos ombros suados. Jogou as vagens no balde e o pegou com as duas mãos.

— Traga minha camiseta, May Belle.

As moscas eram mais importantes que o caminhão de mudanças.

May Belle foi correndo até o fim do caminhozinho e apanhou a camiseta que ele tinha jogado por lá. Veio andando, segurando a roupa com dois dedos, bem longe do corpo.

— Ai, que fedor... — disse, igualzinho a Brenda.

— Cala a boca! — cortou ele, e tirou a camiseta da mão dela.